Concurso de contos de O Globo

Nesse concurso anual do jornal, era necessário falar sobre o Carnaval e assinar com pseudônimo. Agradeço a Jurema por ter me ajudado a reduzir o texto e atingir os caracteres limite.

Amor de carnaval
Por Godofredo de Alencar

Tomás acordou cedo e animado naquela sexta-feira de carnaval. Não que ele fosse um folião inveterado. Somente o feriado valia a pena. O melhor do ano. Tomou banho e foi trabalhar. À noite tinha um chope com amigos no Centro.
O dia passou lento como um desfile de escola de samba. Às 18 horas saiu apressado sem olhar para os lados evitando as tradicionais perguntas sobre onde passaria o carnaval. Chegou ao bar e foi saudado pelo gerente e garçons, todos seus amigos. Pegou uma mesa com lugares para todos e pediu o de sempre: uma caldeireta com dois dedos de espuma cremosa de chope claro com duas gotas, importantíssimo!, de chope escuro.
Os amigos foram chegando, todos animados com o início do reinado de Momo. Tomás não se deixava contagiar com o clima. A ele bastava estar naquela choperia, sendo bem atendido com seu chope feito sobre medida e a companhia dos amigos.
Heráclito, o mais extrovertido dos amigos, sentindo Tomás ausente das discussões a respeito de blocos, bailes, desfiles e outras fanfarras, resolveu desafiar o amigo: ele deveria participar ao menos de um evento no carnaval e depois sim, dizer se gostava ou não da festa. Caso continuasse a não gostar, a turma pagaria seus chopes até o próximo carnaval. Se, numa hipótese raríssima, Tomás se encantasse levemente com toda aquela coisa “chata e artificial”, ao grupo bastaria o gostinho de tê-lo feito mudar de idéia.
No sábado bem cedo já estavam batendo à porta de Tomás. Heráclito nem lhe deu chance de falar nada. Invadiu o pequeno quarto-e-sala do Catete e ordenou: Tome um banho rápido e eu pego sua roupa. Aonde iremos? Perguntou um atônito Tomás. Ouviu algo parecido com andar de lambreta. Era Bola Preta. Cordão do Bola Preta. Do? Não é “da”? Não. Não era.
O café da manhã foi engolido na padaria da esquina da Correia Dutra e dali para a Cinelândia. Nos breves minutos de trajeto de metrô, Heráclito tratou de dar um resumo do que era o Bola Preta. O café com leite e o pão na chapa já faziam efeito e aos poucos o mau humor ia desaparecendo.
Chegando à Cinelândia e vendo aquela indescritível multidão, o primeiro impulso de Tomás foi pular de volta para dentro da estação. Foi impedido por Heráclito que o segurou e o levou ao grupo de amigos que, alegremente, já os esperavam. Alegremente era um eufemismo. Estavam todos devidamente calibrados por diversas latinhas de cerveja. Tomás viu que não haveria saída e se deixou levar.
Quando o grupo chegava à Rio Branco decidiram dar por encerrada a participação no mais antigo bloco de rua do carnaval carioca e fazer uma parada estratégica na tradicional Confeitaria Colombo para recompor as energias. Tomás achou tudo aquilo inusitado e pôs-se a imaginar o que as damas da sociedade carioca do início do século XX, tomando seus chás, achariam daquela cena. Talvez não achassem nada demais, caso entre elas estivesse certa Francisca Edwiges Neves Gonzaga, a Chiquinha Gonzaga. Isso não tinha nada a ver com o momento vivido pelo grupo. Mas ao mesmo tempo, fazia parte do inusitado que era a vida do carioca e do folião. Sorriu para si mesmo e mastigou uma torrada com geléia. A mente viajava na contemplação de tempos passados.
Como a farra foi boa, Tomás foi liberado pelo grupo para ir descansar. Dessa vez se precaveu: desligou os telefones, fechou as janelas, ligou o ar refrigerado no máximo e ordenou ao porteiro para não deixar ninguém subir. Seu cansaço físico e mental era tão grande devido ao dia agitado somado a semana de trabalho, que Tomás dormiu até o meio-dia de domingo. Saiu de casa, comprou o jornal e foi almoçar. Isso sim é que era vida: nada pra fazer. Carnaval era definitivamente uma coisa besta.
Voltou para casa no meio da tarde com o estômago e a mente saciados. Sentou-se e começou a zapear os diversos canais a cabo. Adormeceu. Foi acordado por batidas à porta. Heráclito de novo? Sim, era ele. Estava com ingressos para um camarote da Sapucaí e era claro que Tomás deveria lhe acompanhar. Concordou. Tomou banho, vestiu-se e seguiram para a Avenida.
Mesmo atordoado com a confusão reinante, a quantidade absurda de gente indo e vindo em todas as direções, Tomás se sentiu confortável. Foi só chegar ao camarote para começar um desfile de celebridades, pessoas que ele só tinha visto até então pela televisão. A noite ia caminhando a sua maneira quando Tomás vislumbrou uma mulher isolada num canto. Ela era magra, porém o corpo era muito gracioso. Os cabelos eram curtos e neles, bem como no rosto, um brilho. A pele era muito clara, com sardas que lhe emprestavam um charme a mais. Os olhos castanhos transmitiam uma melancolia já conhecida por Tomás. Na mão esquerda, o chope esquentava. Foi ao encontro da moça. Jandira era seu nome. Contou que estava lá, pois fora levada por um grupo de amigos loucos por carnaval. Ela não gostava de carnaval. Tomás achou todas as semelhanças entre eles quase um sinal. Mas um amor de carnaval era tudo que um republicano em reinado de Momo não poderia esperar. Conversaram toda a noite e quando a última escola desfilava, sob o sol da manhã, Jandira o beijou. Sem aviso, suavemente. Os amigos estranharam quando ambos pediram para continuarem a serem chamados para os eventos nos próximos dias restantes da festa. Para eles, nada podia ser mais apropriado do que curtir aquela paixão no absurdo daquela festa. E assim, Momo gerou mais um “amor de carnaval” para duas pessoas totalmente avessas àquela festa. E como não poderia deixar de ser, esse amor dura até hoje, ao contrário dos outros “amores de carnaval”, essa coisa chata e de alegria artificial!

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